sexta-feira, 29 de abril de 2011

Conto Político

A tribo


         Existe uma tribo indígena (ou uma sociedade, como queiram) muito importante; bem, talvez nem tão importante assim. Eles são muitos. Estão espalhados pelo mundo todo. Mas, em comparação com o resto da população mundial, é mais prudente, na verdade, dizer que são poucos; uma minoria. Não são homogêneos. Apresentam exemplares bastante diversificados. É difícil classificá-los. Contudo, compartilham certas características que os torna uma unidade impossível de não ser percebida.
        A cosmologia dessa tribo gira em torno de umas poções mágicas muito estranhas. Tais poções servem para a prática da feitiçaria. E, por incrível que isso possa parecer, seu poder é indiscutível. O encanto que emana das poções é dotado de uma tal eficácia simbólica que chega mesmo a enfeitiçar os membros de outras tribos – em tese, menos suscetíveis à sua força mágica. Para pertencer à tribo, é preciso possuir uma quantidade substancial de poções mágicas. Note-se que aqui o termo “possuir” apresenta um significado similar àquele que costumamos entender em nossa visão de mundo, uma vez que a noção de propriedade privada é bastante aguçada nesta tribo. Possuir poções mágicas é o mesmo que ter poder. Como em muitas sociedades tradicionais, as poções, e, por extensão, o poder, são transmitidas de forma hereditária. Entretanto, não há uma estratificação social rígida ao extremo. É possível que, ao acumular poções, outras pessoas consigam associar-se à tribo. Trata-se, porém, de uma prática complicada, que envolve uma série de rituais de passagem, e sempre há o risco de o novato ser alvo de preconceitos – por parte daqueles membros mais tradicionais, mais ortodoxos e, por isso mesmo, de status considerado superior. Mas penso que no fim, talvez, prevaleça o fator “acumulação de poções mágicas” – e, portanto, a inserção dos novatos. Qualquer antropólogo sabe que, em uma sociedade indígena, existe um grande respeito no que se refere às práticas de feitiçaria. Ninguém quer ser vítima do poder mágico – ou, poderia dizer, metafísico, já que se trata, em suma, de algo transcendental.
        Como já se deve imaginar, a vida cotidiana dessa tribo é em muito regulada pelas práticas mágicas. As relações sociais são estranhas. A reciprocidade é entendida como moralmente errada. No entanto, é praticada com freqüência no interior da tribo – sobretudo dentro dos grupos familiares. O problema surge quando analisamos as relações que eles estabelecem com outros grupos sociais – com os estranhos. A tribo é fortemente etnocêntrica. É verdade. Não devemos aqui ser românticos e partir do princípio de que o nativo é bom por natureza. As relações com “o outro” são conflituosas. E, por causa das poções mágicas, eles geralmente os dominam – ou pensam que dominam, não sei bem. A reciprocidade não deve regular as relações entre a tribo e os outros. Das ações dos estranhos, bem como da natureza, provém boa parte da energia usada para o encantamento das poções. E, se é certo que acumular mágicas implica a concentração de feitiçaria, também é verdade que a tribo não deseja dividir as suas poções, seu encanto e seu poder.
        A tribo costuma se unir, se ajudar, abraçar-se (como fazem os amantes) quando se trata das disputas com os “outros”. No entanto, em seu interior, ocorrem brigas ferrenhas. O conflito é tenso e permanente. Disputa-se o poder, o status e, em última análise, a feitiçaria. É por isso que a política é tão importante na vida da tribo. Ela funciona como um regulador das relações sociais, como um mediador que permite aos índios disputarem entre si, resolverem seus problemas. Tenta-se atingir o consenso, mas muitas vezes a solução só se dá por meio da força. Os membros da tribo às vezes amaldiçoam seus próprios pares. Jogam seus feitiços uns contra os outros, a fim de alcançarem uma posição superior na complicada hierarquia (impossível de ser compreendida) do poder mágico que dá sentido à sua vida social. O interessante é que aqueles que são entendidos como os homens da política e da religião costumam servir aos feiticeiros mais poderosos. Estes tentam a todo o momento interferir nas decisões políticas que devem ser aplicadas ao coletivo. A política não pode ir contra o poder mágico, senão o feitiço se volta contra ela.
        A propósito, é importante lembrar que a feitiçaria não está ligada diretamente aos rituais religiosos da tribo. Os deuses geralmente são invocados em nome da unidade social, moral e cultural, enfim, da cosmovisão que situa a tribo no mundo e lhe dá um sentido existencial. Entretanto, inúmeros rituais religiosos do cotidiano são desrespeitados. Alguns tabus são transgredidos. Quando o índio está longe dos ritos grupais (públicos), essa tendência se acentua. A religião parece atender aos interesses dos membros da tribo. O feiticeiro não teme as divindades, pois crê que o poder das suas poções é equivalente (ou talvez superior) ao dos deuses e ao dos espíritos. Os deuses criaram o mundo. Os feiticeiros, porém, mandam nele hoje.
        A tribo se relaciona com a natureza e com os “estranhos” tal como o ferreiro se relaciona com o ferro. Os índios crêem que os dominam, já que, em sua estranha visão das coisas, as poções mágicas (cujo poder é a um só tempo espiritual e, ao encarnar-se em artefatos, substancial) chegam mesmo a fazer o mundo prostrar-se diante dos feiticeiros. Trata-se de um poder simbólico realmente impressionante. A magia da tribo é usada de diversas formas. A principal delas, algo que se torna óbvio após algum tempo de estudo, é aquela que serve para multiplicar a própria magia. Poções geram mais poções, e assim por diante. Mas há um caso muito especial, que ocorre quando a feitiçaria é realizada pelos índios ditos “sábios”. Esses velhos conhecedores do universo, curandeiros, alquimistas, contadores de histórias (é difícil defini-los), entre outros, valem-se de todo o seu saber tradicional para dotar as poções mágicas do encantamento apropriado à dominação da natureza e de seus incômodos vizinhos humanos – tarefa que, sabido por eles mesmos, não é tão simples como parece.
        Com tais crenças acerca de seu lugar e importância no mundo, pode-se imaginar o quanto a tribo valoriza as atividades que, na falta de uma palavra melhor, poderíamos chamar de econômicas. Estas despertam um verdadeiro fascínio nos membros da tribo. As poções mágicas confundem-se intrinsecamente com as práticas da “economia”. Seu poder metafísico contrasta com sua eficácia no plano das coisas materiais; ambos estabelecem, não obstante, uma relação diretamente proporcional. As poções, em si mesmas, são quase abstratas; mas a matéria (os objetos), contudo, também possui uma magia para a tribo, uma espécie de mana. Práticas econômicas são demonstrações de poder – entenda-se poder mágico, feitiçaria.
        Enfim, as práticas dessa tribo podem parecer bastante exóticas; sua cultura, extremamente simples e baseada em mitos. Os termos “poções mágicas”, “rituais” e “feitiçaria” podem soar inverossímeis, não condizentes com a realidade. No entanto, expressam práticas e idéias que são vistas pela tribo como verdades absolutas, inquestionáveis. Apesar da imagem aparentemente irracional e difícil de ser compreendida, as ações e crenças desses índios têm uma razão de ser, têm um sentido, estão inseridas em um universo simbólico de entendimento do mundo que as reafirma como verdadeiras. E nós, supostamente donos da razão, que acreditamos analisar os outros “de fora”, “de cima”, estamos bastante próximos desta tribo. Sem o saber, somos por ela influenciados. Eu e você, leitor, estamos enfeitiçados pelo poder das poções mágicas. Afinal, esse poder gravita em nosso universo – e sua eficácia não deve ser desprezada. Estamos embebidos de tais feitiços, de modo que os concebemos como “reais” e não como “práticas indígenas”. As poções dessa tribo são verdade em nossa vida, assim como as práticas de feitiçaria e os efeitos que elas criam...

DLBJ

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