quinta-feira, 28 de julho de 2011

Poema Numérico

Matemática

Um homem se matou.
Dois homens faleceram.
Três homens pararam de respirar.
Quatro homens foram assassinados.
Mil homens morreram.
E pararam de sofrer.

Um homem foi trabalhar.
Duas mulheres foram trabalhar.
Três homens foram trabalhar.
Quatro mulheres foram trabalhar.
Cinquenta pessoas foram trabalhar.
E alguém ficou muito rico.

Uma mulher não pensou.
Um homem não pensou.
Uma mulher engravidou.
Uma criança nasceu.
O mínimo de dinheiro faltou.
E uma criança sofreu.

Um político roubou.
Dois políticos roubaram.
Três políticos roubaram.
Dezenas de partidos se aliaram.
Quinhentos políticos corromperam.
E muito dinheiro sumiu.

Um homem mandou matar.
O mesmo homem humilhou.
O mesmo homem explorou.
O mesmo homem estuprou.
O mesmo homem foi prestigiado.
E outro foi preso em seu lugar.

Uma pessoa foi enganada.
Duas pessoas foram iludidas.
Três pessoas foram ludibriadas.
Milhares de pessoas foram trapaceadas.
Milhões de pessoas foram logradas.
E as televisões foram desligadas.

Uma pessoa chegou ao hospital.
Duas pessoas chegaram ao hospital.
Cem pessoas chegaram ao hospital.
Trezentas pessoas chegaram ao hospital.
Dez médicos não chegaram ao hospital.
E vinte pessoas morreram no hospital.

Uma criança entrou na sala de aula.
Duas crianças entraram na sala de aula.
Três crianças entraram na sala de aula.
Quarenta e oito crianças entraram na sala de aula.
Uma professora entrou na sala de aula.
E ninguém aprendeu nada.

Uma merenda não foi servida.
Duas escolas não foram erguidas.
Três postos de saúde não foram construídos.
Quatro estradas não foram concluídas.
Milhões de pessoas não foram atendidas.
E uma quantia incalculável foi depositada em uma conta nas Ilhas Cayman.

Um carro foi montado.
Duas usinas atômicas foram expandidas.
Três fábricas foram inauguradas.
Milhões de pessoas venderam.
Bilhões de pessoas consumiram.
E um planeta foi destruído.


DLBJ

terça-feira, 26 de julho de 2011

Poema de Protesto

O dia de João

João acordou cedo
Às cinco horas da manhã
Comeu pão com margarina
E Bebeu café preto, com açúcar branco
Saiu, tomou chuva na parada de ônibus
Não havia teto nem bancos para sentar
Pegou o ônibus
Uma hora em pé
Desceu, foi para a segunda parada
A chuva parou, veio o sol
Os braços doíam, de carregar suas ferramentas pesadas
Pegou o segundo ônibus
Quase ao descer, sentou-se por cinco minutos
Ah, que alívio
Logo desceu
Caminhou por quinze minutos
Chegou ao trabalho
Virou massa
Ergueu tijolos
Cortou-se com o serrote
Perdeu a lucidez por se expor horas ao sol
Aí parou para comer
Dez minutos, a vianda fria
Voltou para o trabalho
Fez tudo de novo
Já estava escuro
João guardou as ferramentas
O corpo doía
A cabeça doía
As mãos não sentia
Sujo e fedido
Cansado e cortado
Enrudecido e humilhado
Foi-se embora
Tudo de novo, nas paradas de ônibus
Quase em casa, foi parado pela polícia
Deve alguma coisa, vagabundo?
Não senhor, sou trabalhador.
Sei. Estamos de olho.
Chegou em casa
Largou as ferramentas
Tomou café preto com pão com manteiga
Estava prostrado
Sentou-se para assistir TV
Cinco filhos não permitiam seu sossego
A mulher na lida dos afazeres domésticos
Tomou um breve banho
Jantou: arroz, feijão e galinha
Foi para a cama
Onze horas da noite
Os filhos adormeceram
Rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria
Deu uma rapidinha com a mulher
E dormiu, praticamente morreu
No outro dia, tudo se repetiu
E poderia ser pior
João poderia estar desempregado
E aí nem isso teria
Enquanto isso
O padre reza
O empresário enriquece
O político rouba
O estudante estuda
A prostituta trepa
O policial prende
O músico canta
A criança brinca
O bebê chora
Eu escrevo este poema
E você o lê

DLBJ

Crítica

A mídia e a mentira sobre a mulher brasileira

Estava eu, pacato cidadão brasileiro que sou, sentado à mesa almoçando, no intervalo do trabalho, quando me deparei com a seguinte matéria jornalística, veiculada por um popular noticiário televisivo gaúcho, que passa ao meio-dia: “fulana de tal, gaúcha, é a Miss Brasil 2011. É a 11ª conquista dos gaúchos"!
Confesso que essa matéria me tocou profundamente. A mídia dá com uma mão e tira com a outra. É sabido que há décadas, para não dizer há séculos, existe um profundo sentimento de inferioridade arraigado nos corações dos brasileiros. A elite, submissa ao estilo de vida e aos conceitos criados na Europa e nos EUA. O povo, sofrido e perdido (entre as idiossincrasias do passado e a modernidade consumista, na qual não conseguiu se inserir), foi sendo domesticado para aceitar as vicissitudes da vida dura, de um país pobre, em que se deve primeiro esperar o bolo crescer para depois repartir, e foi adquirindo a “consciência” de que, afinal, somos uma nação incivilizada, despreparada, o país das bananas. Resta-nos, ao menos, a histórica cordialidade e o orgulho de ser brasileiro, povo que não desiste nunca.
Não estou pondo em questão aqui aquilo que é óbvio, isto é, o fato de as elites e a grande mídia do Brasil estarem comprometidas, em primeiro lugar, com os interesses externos, econômicos e políticos, o que, aliás, já ocorre há muito tempo por estas terras. O detalhe é que um povo espezinhado se torna uma ameaça, e ridicularizar o Brasil sem cessar é dar margem para que outros resolvam agir. Se isto é uma porcaria, vamos fazer alguma coisa? Este é o espírito da coisa. Aqueles que circulam pelas grandes redes do poder não querem que outros decidam por eles. Assim está bom, não está? Eu vou todos os anos para Miami, para Paris (com sotaque francês), para a Costa do Sauípe. O povo? Quem? Espera aí, que estão me chamando pelo celular (que está no silencioso, sem vibrar). O que quero dizer é que há técnicas até certo ponto sutis de controle do povo. Fazei o povo baixar a cabeça! Fazei o povo aceitar sua condição de inferioridade. Mas dai ao povo alguma alegria, algum orgulho, algo em que se apoiar. É aí que entra o mito da mulher brasileira.
Quem já não ouviu a frase: a mulher mais bonita do mundo é a mulher brasileira? “Agora chegou a vez, vou cantar, mulher brasileira em primeiro lugar”. A beleza da mulata, com seu samba no pé, capaz de enlouquecer os homens e de arruinar casamentos. Aquela mulher gostosa, com pernas roliças, bunda arrebitada e olhar de malícia, herdeira da Capitu, talvez (com olhos de cigana oblíqua e dissimulada). A negra ardente da Bahia. A índia que seduziu portugueses. A mestiça que encantou os viajantes do passado. É, mulher brasileira: ah, quanta beleza! Temos de que nos orgulhar. Há outros “orgulhos” nacionais, é claro, mas me manterei por ora restrito a esta questão: o fascínio que causa a mulher brasileira.
E eis que, todos os anos, realiza-se por estas bandas tupiniquins um concurso de Miss Brasil. Concorrência acirrada, é de se imaginar, uma vez que se trata nada mais, nada menos, das mulheres mais lindas do mundo. Eu quero uma pra mim! Eu não assisti à cerimônia do concurso, mas devo inferir que, lá, estavam presentes as autênticas mulheres brasileiras, não? Acho que não. Todos os anos, praticamente, é a mesma coisa. A vencedora é sempre uma gaúcha da região serrana, de terras de imigrantes alemães ou italianos, uma catarinense de Blumenau ou algo assim, uma paulista de tez branquinha, pouco ensolarada (talvez por viver na terra da garoa). Então, espera aí, estão me enganando? Como assim? Não entendi. A mulata mais gostosa, orgulho nacional, é a mulher mais bonita do mundo. Mas a mais bela do Brasil é uma jovem branca de classe média, de cabelos e olhos claros, que não negam sua origem europeia? Não seria melhor importar uma Miss Brasil diretamente da Alemanha? Convidar uma italiana para passar as férias no Rio de Janeiro e coroá-la Miss Brasil?
A questão é ainda mais complexa. Quem é a mulher brasileira? Imagino que, por vivermos em um país “em desenvolvimento”, em que grande parte da população ainda vive nos limiares da pobreza, a verdadeira mulher brasileira, ou seja, o padrão que melhor a representa, seja o da mulher miscigenada, pobre, trabalhadora, mãe, que não faz escova semanalmente nem consegue caminhar com um livro sobre a cabeça sem deixá-lo cair. Eu teria ficado feliz se a Miss Brasil 2011, título que, por si só, já merece levar o rótulo de ridículo, fosse uma sertaneja, uma nordestina que vive em São Paulo, uma negra, uma favelada, uma dessas mulheres que realmente conhecem o Brasil que existe, o Brasil que não aparece nas telenovelas. O ponto aqui não é beleza. Não quero julgá-las, nem as injustiçadas, nem as que aparecem nas revistas e recebem as faixas de Miss Brasil. Não quero julgá-las individualmente, como pessoa, mas, sim, discorrer sobre uma realidade que é anterior à decisão extremamente subjetiva sobre quem é a mulher mais ou menos bonita. A Miss Brasil 2011 é estudante de jornalismo. Isso é eufemismo para alguma outra coisa? Ora, veja só se a verdadeira “mulher brasileira” (coisa que muitos enchem a boca para falar) pode ser uma estudante universitária. Até ontem, a universidade era privilégio dos homens brancos e ricos. Agora, permanece, embora com significativas mudanças, privilégio de poucos, principalmente de homens e mulheres que, cá para nós, não vivem na miséria. A Miss Brasil 2011 poderia ser lavadeira, diarista, caixa de supermercado, dona-de-casa. Poderia ser até uma dessas mulheres que são vítima de violência doméstica (ganhando o título com um olho roxo, que crueldade, não desejo isso a elas), pois aposto que há muito mais brasileiras que levam uma coça dos maridos em casa que brasileiras estudantes de jornalismo.
Não se trata de uma defesa da maioria. Ah, se a maioria é pobre, a Miss Brasil deve sê-lo também. Se o Brasil é um país miscigenado, nada mais natural que nossa representante seja uma mulata. Não é por aí. Para falar a verdade, nem concordo com a ideia de que exista “a mulher brasileira”, tampouco com a de que devamos rotulá-las e endeusá-las, como se elas fossem troféus. "Ah, ali vai a Miss Brasil, enchendo-se de grana e de glórias, que eu, empresário ou político, pretendo um dia comer". Não. Apenas desejo propor uma reflexão. A imagem da mulher brasileira veiculada pela mídia e pelas velhas canções dos músicos que ganharam muito dinheiro e enriqueceram gravadoras, é uma imagem tipo exportação, como o nosso café. A mulher made in Brazil transformou-se em objeto de consumo, de desejo, chegando à beira da prostituição, que é o que ocorre no submundo da indústria do turismo. Para que serve a mulata? Para casar e ser a mãe dos seus filhos? Podes conversar com ela sobre Dostoievski, sobre a antropofagia de Oswald de Andrade, sobre o governo Collor? Não sei, mas não é o que se pensa quando se olha para a bunda gostosa dela (que é o que a televisão exibe). Será que alguém chegará sem mais nem menos passando a mão na bunda da Miss Brasil 2011, a gloriosa gaúcha estudante de jornalismo? Acho que não. Essa, tirará fotos e será lisonjeada, será muito bem tratada. Aquela, será vista como animal, pronto para o abate (e a mídia ainda insiste em fazê-la comportar-se como tal).
Em um país de submissos (todos, ricos e pobres), que se orgulham daquilo que determinadas forças construíram, historicamente, como motivo de orgulho, ensinando-lhes a orgulhar-se, há vários mitos, e um deles é o de que a mulher brasileira é a melhor de todas, a mais linda. Mentira. Se isso fosse verdade, a mesma seria valorizada e bem tratada. Na hora do sexo, do carnaval, do xaveco, da porrada, de cuidar dos filhos sozinha, sem pai, de trabalhar 12 horas por dia, etc., a brasileira pobre e miscigenada serve. Na hora do encanto, do prestígio, da elegância midiática, do zelo e do carinho, é preferível a branca europeia, de cabelos tão dourados como o trigo e a pele alva, sem as marcas que a vida no Brasil costuma imprimir em sua gente.
Esta crítica não se dirige a tudo e a todos, pois sei que há mulheres felizes e bem tratadas, pobres e amadas por seus maridos e namorados (mas esses são gente comum também, gente brasileira). A mesma é direcionada especialmente à indústria cultural, à mídia, que nos ilude diariamente com discursos furados e com imagens atraentes, e que consegue, a um só tempo, enaltecer vulgarizando, defender vendendo, qualificar desqualificando; e que, de maneira hipócrita e por vezes irrefletida, acaba exibindo como um feito suas próprias contradições, como no caso da Miss Brasil 2011, a mulher mais bonita do país.

DLBJ

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Ensaio II

A coisa

Poucas palavras expressam tão bem o espectro cultural das sociedades modernas ocidentais e ocidentalizadas como a palavra “coisa”. Apesar de provir do Latim causa, que significa “motivo”, “razão de”, e em que pese o fato de apresentar diversos significados, a palavra coisa comumente é associada aos objetos, àquilo que objetivamos, que tornamos palpável, tangível, mensurável. E a mesma não é privilégio das línguas neolatinas, haja vista a palavra inglesa thing, de origem anglo-saxônica, que, guardadas as diferenças entre as línguas, tem sentido relativamente similar ao que verificamos, por exemplo, em português. Não quero propor aqui nenhuma discussão com os linguistas, que me criticarão por ensaiar, talvez irresponsavelmente, acerca de um tema que pouco conheço do ponto de vista científico. Apenas me refiro a um sentido muito peculiar da palavra coisa, que está presente em diversas línguas e que caracteriza, em grande parte, o espírito de nossa sociedade e de nosso tempo. Entenda. Ao interagirmos com o mundo, com a natureza, paulatinamente construímos uma percepção utilitarista da realidade, em que todo o espaço extra-humano é considerado propriedade humana; tudo está a serviço da dominação humana. Os seres micro naturais e as forças macro naturais tornaram-se objetos domináveis, a fim de que se obtenha a supremacia do homo sapiens sobre o planeta. Os próprios homens tornaram-se, em um processo que já vem de longa data, instrumentos de conquista humana, de dominação do todo. Esta visão muito singular no que tange à realidade além-homem, concebe, sem sombra de dúvida, o universo enquanto objeto, enquanto seres adquiríveis, pegáveis, utilizáveis, descartáveis. E isto por quê? Ora, porque o homem ocidental enxerga-se fora da natureza, vê-se como ser supremo. Afinal, ele não é pouca coisa, mas, sim, a criatura feita à imagem e semelhança de Deus pai, criador do céu e da terra. Este homo economicus entende que tudo é seu e produziu uma determinada significação da palavra coisa no intuito de genericamente denominar tudo que lhe pertence. Na falta de melhor termo genérico, atribui-se aos objetos o substantivo coisa, que é vil, prosaico. Nas sociedades do passado, dominadas pela crença na magia e bem menos arrogantes na compreensão de sua posição no mundo, pelo menos no que se refere às suas realizações práticas na interação com o universo natural, havia uma sacralização dos seres (vivos, sobretudo), que não permitia que os mesmos fossem entendidos como meros objetos, como coisas domináveis. O termo coisa veio a vulgarizar a existência extra-humana, no sentido de legitimar o domínio humano do espaço e de seus elementos, agora dessacralizados. O desenvolvimento das ciências é parte indissociável do avanço neste processo de objetificação do cosmos. Ao objetivarmos tudo, repartimos o universo, fragmentamos os seus elementos, tentamos entender suas “partes”, a fim de extrair o máximo proveito das mesmas; afinal, trata-se apenas de objetos, de coisas. As ciências constituem um legado cultural que busca a racionalização das coisas, que pretende analisar, medir, comparar, utilizar, criar, render, fazer, contabilizar, precisar, gerir, dominar, politizar, entre outras “coisas”. Em suma, são o sinal de que avançamos em nosso processo de dominação da natureza, que é motivado por uma compreensão não holística do universo, por uma percepção que vulgariza aquilo que não é humano e que considera que tudo está ao nosso dispor. As origens disso são longínquas e é difícil precisá-las. Mas não é de se admirar que tal processo tenha se dado em uma sociedade que se vê não como a natureza e o mundo, mas como o criador do mundo, isto é, em uma sociedade que se percebe fora da ordem cósmica e de sua miríade de inter-relações entre os mais diversos elementos. A objetificação do mundo, a conversão dos seres em coisas é tamanha, que nas suas interações, os próprios seres humanos transformam-se em objetos, utilizando uns aos outros, coisificando as relações entre pares, produzindo formas sui generis de desumanização do homem. Sim, porque se o ser humano transformou aquilo que não é humano em objeto, para diferenciar-se da natureza, que lhe é inferior, o que ocorre quando o mesmo coisifica (com objetivos utilitaristas) aos próprios companheiros de espécie? Ora, na medida em que um ser humano transforma ao outro em coisa, retira-lhe a condição de humanidade, uma vez que, de acordo com os pressupostos intrínsecos à tradição cultural que herdamos, a não coisificação é condição sine qua non para que sejamos considerados humanos e para que vivamos como tal. Lembre-se: não humano = coisa = objeto = algo de que se pode dispor livremente, para fins diversos, haja vista sua condição de inferioridade e vulgaridade; ser humano = aquele que tem poder sobre o universo das coisas. Logo: se passamos a tratar aos próprios seres humanos como coisas, como seres utilizáveis e descartáveis, estamos coisificando-os, objetificando-os (transformando-os em objetos), isto é, estamos desumanizando-os. Mas a coisificação do próprio homem não é algo que se dê apenas de uma pessoa em relação à outra. Ao submetermos nosso próprio pensamento, nossas ideias, nossos sentimentos, nosso trabalho, em suma, tudo aquilo que fazemos, a um modus vivendi objetificado, estamos desumanizando a nós mesmos. Ao fazermos de nós mesmos (e de nossa existência) objetos, coisas (mensuráveis, quantificáveis, calculáveis, analisáveis, domináveis, subjugáveis, compráveis, trocáveis, etc.), estamos destruindo nossa própria condição de humanidade e estamos acabando com nós mesmos, assim como fizemos com a natureza e com toda a realidade extra-humana. Nós, seres que nos achamos superiores e que deturpamos o mundo em nome disso, demos início a um processo de autodestruição, de transformação do homem em coisa, de tudo em coisa. Tudo é objeto. Tudo pode ser utilizado. Achamos, erroneamente, que a natureza não é mais dona do próprio nariz. Temos a convicção de que uns homens e mulheres são propriedade de outros. Talvez fosse melhor se ainda adorássemos o sol e temêssemos o fogo.

DLBJ

Ensaio

Suspiro, ou o despertar do sono

O que é a mudança, na vida, senão um ato de coragem? A existência é um movimento permanente, movimento do corpo, do espírito, de todas as coisas. Estamos em constante movimento, porque, além de nosso agir, existe todo um movimento cósmico, que conduz a tudo e a todos mesmo que nós, humanos, não consigamos perceber. É o modus operandi do universo. Mas, por outro lado, condenados aos limites de nossa inteligência e percepção, tendemos a enxergar o movimento apenas naquilo que fazemos e que nossos semelhantes fazem, naquilo que observamos, quase “objetivamente”, de ação realizada pela natureza e pelas demais forças móveis do cosmos. Aí surge um impasse. Talvez aqueles grandes eremitas ou monges, que dedicam anos de suas vidas à meditação, consigam perceber, ainda que minimamente, o quanto estamos doutrinados a conceber a vida de uma forma, não diria ilusória, mas única, isto é, de uma certa forma, entre tantas outras formas de percepção que existem no universo, que escapam à nossa limitada conjunção de sentimentalidade e racionalidade (animais que somos). Talvez um índio, conduzido por seus rituais sagrados de entorpecimento, possa ver além, e rir de tudo o mais que observa na existência humana. Mas não nós. Nós, criados em sociedades de Estado, sob a égide do poder, ocidentais, burgueses, domesticados, docilizados, reprimidos, contidos, calculistas, analistas, moralistas, individualistas, consumistas, sádicos e masoquistas. Nós jamais chegaremos à beleza da compreensão do cosmos de um índio fechado em si mesmo, mas aberto para tudo o que existe. Tampouco a nossa ciência, que é filha de todo este conjunto de características limitantes que definem, grosso modo, o nosso jeito moderno de viver, o nosso ethos. Não se trata aqui de uma crítica virulenta à nossa mediocridade, apenas de uma constatação. Que mal há em se dizer a verdade? Que me desculpem os entusiastas da humanidade e de todas as gloriosas conquistas da civilização, mas vocês não são ninguém, não são nada. Aliás, até são, mas não mais que a pedra que dorme no leito de um rio, que o beija-flor que, parado, consegue bater suas asas, que o oxigênio que circula pela atmosfera e que entope os seus brilhantes cérebros. Como disse, nada de crítica ácida. Apenas uma pitada de realidade. Então, a partir deste momento, o que fazer? Se somos tão pouco, se somos mera parte de toda a unidade universal? Para que dominar e destruir? Para que subjugar? Só se for para comprovar, ilusoriamente, nossa superioridade que, insisto, é produto de nossas próprias cabeças doutrinadas que não concebem a verdade, mas uma verdade. Reles seres que somos. O doente do espírito agora diria: que me resta, além de me matar? Pode ser, não nego que seja uma alternativa viável. Mas sugiro que se encare a coisa por outro lado. Admitindo a nossa não superioridade, também não precisamos carregar todo o fardo que a mesma implica, todo o peso de sermos os melhores e os responsáveis por conduzir o futuro do planeta, quiçá do universo. Já é alguma coisa. Além disso, uma vez que Eva e Adão comeram o fruto proibido e que não podemos mais retroceder à inocência pregressa, é necessário buscar um estado de equilíbrio. Sabemos quem somos, mas não conhecemos nossos limites. Devemos exercer nossas potencialidades, mas o fazemos de maneira errada, ou seja, contra tudo e contra nós mesmos. Potência significa capacidade de ação, e a ação deve se dar no sentido de buscar alguma coisa, que, no caso dos seres humanos, talvez seja a felicidade (aquilo que nos deleita). Mexer-se é ter coragem para ir ao encontro da felicidade. Insistimos em existir recorrendo aos polos, ora o apolíneo, ora o dionisíaco. Mas, para quem não percebe a vida de maneira compartimentada, tal diferenciação não faz muito sentido. Tudo é experiência, e experiência é vida, e pode ser felicidade, dependendo de como agimos e daquilo que sentimos. Cabe, aqui, uma ressalva. Que minhas elucubrações não sirvam erroneamente para justificar toda e qualquer atitude. Lembre-se de quem somos. Não os senhores do universo, mas uma pequena parte da eterna movimentação cósmica. Assim, é fundamental que, ao agir, ponderemos os fatos e as instâncias de acontecimento das coisas. Deve-se experimentar as mais diversas possibilidades da existência humana. Porém, ao mesmo tempo, deve-se cuidar para não incorrer em uma postura individualista, pois a mesma contraria toda a lógica aqui proposta da unidade universal. Em suma, não há fórmulas para a vida humana, até porque não somos completamente responsáveis por todos os eventos que se desenvolvem ao longo de nossa existência. As coisas às vezes fogem ao nosso controle. Mas a grande burrice humana está no fato de que, muitas vezes, gastamos nossa potência, fazemo-nos superiores e, com isso, destruímos a nós mesmos (e a todo o universo das coisas não-humanas) e subjugamos nossos próprios desejos e vontades. Envergonho-me disso. Sobretudo porque enxergamos aí a virtude (educados por uma moral repressiva, não era de se esperar outra coisa). O que “diria” disso o leão? O pássaro? A abelha? A água, que insiste em correr? Somos covardes megalomaníacos. Julgamo-nos senhores de tudo e somos escravos de nós mesmos. Nada contra a tradição cultural do mundo moderno, ocidental. Somos filhos de quem somos, e não é uma questão de renegar toda a nossa história. Mas permanecer na mesmice modorrenta me soa tão medíocre, tão infeliz. É possível reconstruir nosso caminho, nem que seja num plano pessoal, subjetivo (quem sabe algo mais, só o tempo é que pode mostrar). A felicidade de cada um, de cada ser humano, tem seu valor. É claro que a mesma não vale mais que a primavera de um urso ou que as carícias da chuva, para uma árvore, mas esta é outra questão. Algumas considerações devem ser sabidas, no entanto: não se está sozinho no universo e, portanto, é preciso zelar por todas as coisas; mas, simultaneamente, é imprescindível o exercício da potência e da virtude, e virtude se exercita com coragem, coragem para não esmagar a outrem e, principalmente, para não provocar, em nome de uma ética hipócrita e traiçoeira, a anulação de si mesmo.

DLBJ

Post-scriptum: Não sou um grande fã de Nenhum de Nós, mas, no momento, esta música me diz algumas coisas...

terça-feira, 19 de julho de 2011

Poema de Resposta

Para bom entendedor...

Às vezes, na vida, é preciso cometer loucuras...
Acabo de fazer as minhas.

Loucuras que me levarão além...
Só me resta ver... e viver.

DLBJ


quinta-feira, 14 de julho de 2011

Poema ao Poeta

Carta ao poeta

Certa feita, um poeta me disse:
Nem sempre se dá o que se quer
A vida é maldita, contida, regrada
Se fosse perfeita, não seria vida
Seria mulher.

O poeta sentia falta
Do que nem mesmo vivera
E pôde expressá-lo com lindas palavras
Artista das letras, poeta que é.

Que posso a ele dizer?
Sinto o mesmo, confesso
E não o falo por dever
Mas porque quero, preciso, peço.

Palavras, fuga da alma
Através delas, o desejo escorre
Enquanto o corpo, adormecido, morre
Por elas, mantém-se a esperança
E voa-se...

Doce crueldade!
Querido poeta: é hora de voltar a sonhar.
Eu já comecei.

DLBJ