sábado, 12 de novembro de 2011

Crônica

Sobre o amor

Os três ideais da revolução francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, até hoje inalcançados em sua plenitude, ainda comovem e causam dor, conduzem sonhos e provocam guerras. Tais ideais não se referem apenas à ordem política, à vida pública das sociedades humanas, senão que também motivam a existência dos indivíduos, o cotidiano, as relações entre as pessoas que, por trás de suas funções, cargos, direitos e obrigações sociais, são somente pessoas, seres racionais e sentimentais que anseiam desesperadamente pela felicidade, por algo em que se agarrar para sentirem que a vida vale a pena, que há porque levantar-se todos os dias, ao invés de permanecer no seu leito em sono eterno.
Poucas coisas são mais expressivas, nesse sentido, que o amor. É, o amor. Aquilo que se sente por algo ou alguém quando desejamos a esses, do fundo do coração, o que há de melhor em nós, quando pensamos nesses antes que em nós mesmos, quando sentimos que aí, nesta explosão interna, encontra-se uma razão para viver, e mais, uma motivação autossuficiente para a felicidade, um bem-estar de si para si. O amor também deve se adequar aos ideais da revolução francesa. Não é por acaso que os mesmos ainda hoje são tão caros, tão desejados. O bom e o bem não podem escapar da justiça, da busca pelo que é mais plausível, digno e simétrico. E tal sentimento está entre o que há de mais nobre e belo no mundo. Assim, deve coadunar-se a princípios da mais alta estirpe.
Quem ama a outrem, é fraterno, ou tem de ser. Que raio de amor seria capaz de preocupar-se apenas consigo? Ou com o outro? Trata-se de um sentimento que exige reciprocidade e, portanto, divisão, distribuição, ganho mútuo. Quem ama, ama para ganhar, mas para ganhar em conjunto. E se for para perder, que se perca em parceria. O ideal é ser fraterno, é estender a mão, é fazer de dois, um só. Amor egoísta encerra-se em si mesmo. Definha, em razão de sua mediocridade. Não se pensa só em si, pois aí não há uma relação entre iguais, mas uma relação de exploração, de usurpação, de domínio, ou seja, uma alienação do amor. No entanto, não se pensa somente no outro, uma vez que o outro é tão importante quanto nós mesmos, mas não mais importante. A fraternidade é uma via de mão dupla.
E é aqui que entra a questão da igualdade. Um amor entre duas pessoas nunca é um amor de iguais. A diferença é uma das maiores belezas humanas, é o que nos diferencia das próprias criações humanas, medíocres e padronizadas. Mas uma relação deve sempre apresentar-se, para prosperar, em condições de igualdade. Igualdade de sentimentos, de sonhos, de interesses, de perspectivas. Igualdade de trocas, de carícias, de receios. Quem ama, quer dar e receber. E não há amor que resista à doação unilateral. Pois quem só dá, é explorado. E quem quer ser explorado, ao menos conscientemente? E quem só recebe, sente-se confortável com isso? Deita a cabeça no travesseiro e dorme como um urso no inverno? Pode até ser que sim, mas aí é o caso de alguém que ainda tem muito o que aprender antes de se propor a estabelecer uma relação digna e profunda de amor, de desejo, de carinho. A igualdade é condição fundamental para o avanço simétrico da inter-relação entre duas pessoas. É um alicerce. Pode até não existir em uma relação, mas aí a via de mão dupla se deturpa, e tudo o mais se torna, cedo ou tarde, exploração de uma parte pela outra, como uma corda que sustenta um balanço. É muito fácil ser banco, e mais fácil ainda sentar-se no mesmo. Difícil é ser corda, e esticar até quase arrebentar. Cabe, aqui, uma ressalva. A igualdade deve ser espontânea ou desejada, e não imposta. Só quem sabe o que é a tirania dos autoritarismos, em quaisquer de suas formas, é capaz de entender que não se cria igualdade por decreto. Tal sintonia, muitas vezes, existe ou não, e nada se pode fazer a respeito. A vida dá-nos circunstâncias, pré-disposições, interesses. No amor, tudo isso se cruza, e compete um pouco ao acaso ajustar este espectro de potencialidades entre duas pessoas. Às vezes instaura-se uma condição de relativa igualdade. Outras vezes, não. É por essas e outras que o amor não está no plano da razão. Não dá para fazer previsões, ajustes forçados. A vida é maior que nós mesmos, como as sensações são maiores que a racionalidade.
E por fim, vem a liberdade. Ah, doce liberdade, que faz com que tantos percam a vida. Antes a morte que a privação de si mesmo. Ora, o amor só é verdadeiro se se ama livremente, se se é livre para seguir os impulsos do coração. É possível fechar-se eternamente a uma só pessoa e mesmo assim ser livre, pois a liberdade está em se fazer o que se quer. Também é possível não prender-se a ninguém, e amar por uma noite, por uma tarde, por uma estação. O que importa é a liberdade, a não opressão, a autonomia, a busca incessante pela felicidade, que não pode ser encontrada se desde o princípio tivermos nosso faro tolhido, nossas condições de realização pré-determinadas. O amor, por definição, já é um sentimento livre, pois se ama a quem se quer, ou a quem se consegue, e não a quem se nos é dito para amar. Não se cobra amor.
Enfim, creio que um sentimento tão nobre como esse só pode ganhar vazão se for à luz dos ideais acima explicitados. E, olhando com profundidade em teus olhos, contemplando teu sorriso encantador, sinto instantaneamente que o nosso amor é fraterno, está em igualdade e, acima de tudo, é composto por imensa liberdade, que é a de estarmos fazendo exatamente o que queremos, isto é, seguindo nossos instintos, desejos, anseios. Por vezes há percalços, ciúmes, egoísmos de parte a parte, o que é normal, diria até, humanos que somos. Mas, de maneira geral, vejo nosso relacionamento muito mais próximo desta forma bonita de amor do que daqueles sentimentos lúgubres, mesquinhos, dos quais nos esforçamos tanto para fugir. É tão bom estar contigo...

DLBJ

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Poema da morte

Da retidão

E, na hora da morte, olhava para cima
O nariz, empinado
“Curva-te, pois quero que, prostrado, sintas teu sangue escorrer”
Disse-lhe o carrasco
Com olhos de fúria, respondeu
“Vergarás meu corpo, jamais minha alma
É assim que se morre"

DLBJ

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Fábula

A cigarra e a formiga: outra versão

       Estava a formiguinha trabalhando, carregando folhas pesadas durante o outono, quando avistou a cigarra, livre, despreocupada, saltitando e cantarolando.
- Cigarra, você não junta água e comida para o inverno que se avizinha?
- Para que juntar? Se a terra me dá tudo de que preciso em abundância...
- Mas no inverno não é assim. Se você não começar a trabalhar agora, passará fome e sede. Se não construir um abrigo, morrerá de frio.
- Entendo. Você não deixa de ter razão. Mas, por outro lado, vocês passam o ano inteiro trabalhando, preocupadas com o inverno, que é a única estação ingrata do ano.
- Você não acha que deve trabalhar, que deve se precaver?
- Talvez. Mas é preciso ter coragem para viver. É preciso ter força, ter espírito, ter paixão. Vou trabalhar, de quando em quando, mas não vou deixar de viver.
- E se o inverno vier e você não estiver preparada? E se o teto faltar? E se os víveres não forem suficientes?
- Tantas dúvidas, tantos medos! E olha que nada disso aconteceu ainda. Há milhões de anos vivemos neste planeta, nós, cigarras, e tantos invernos rigorosos já passaram... Continuamos aqui, vivas e felizes, mesmo depois do frio e das intempéries.
- Pois nós, formigas, temos responsabilidade, vivemos com os pés no chão. Não é o sonho que nos move, mas a dureza da realidade.
- Entendo a vida de vocês, mas não sou assim. As cigarras são livres e indomáveis. Talvez por isso tenhamos asas e as formigas não. Talvez eu prove das agruras do inverno, e de repente nem assista à chegada da primavera. Mas arrisquei e vivi, e fui feliz, e trabalharei sim, mas não a ponto de comprometer todo o resto da minha existência.
- Já as formigas terão um inverno seguro, aquecidas, bem alimentadas, bem acomodadas.
- É claro que sim. Mas e o que ocorre com vocês nas outras três estações do ano? Vocês passam a vida a trabalhar, com medo de enfrentar um inverno longo e escuro. Acaso puderam voar com as folhas caídas do outono? Aquecer-se, paradas, com o tórrido sol de verão? Sentir o cheiro das flores na primavera? Pode ser que o inverno venha mais forte e a nevasca me retire tudo. Mas, ainda assim, terei contemplado a beleza da vida.
- Bonito isso. Gostaria de ver por este ângulo. Mas não há tempo para pensar. Agora tenho que trabalhar.
       E a formiga seguiu sua trilha de formiga, doutrinada por milhões de anos de instintos programados. E a cigarra seguiu cantando, e dançou com a brisa de outono que soprava forte, dando vida às plantas da floresta.
       O inverno chegou, rigoroso. A formiga não pôde ver a cigarra dar seus últimos sopros de vida, carente de água e comida, fraca e desabrigada. Se o fizesse, teria encontrado uma cigarra feliz, de vida breve e intensa, de sorriso nos lábios, mesmo diante da morte, do frio e da fome.
       E o inverno passou. De volta à superfície, a formiga seguiu sua vida de formiga, prostrada, trabalhando incansavelmente, preocupada com mais um inverno que viria e que ela, talvez, nem vivesse para ver.
       A cigarra havia morrido para aproveitar a vida, ao passo que a formiga renunciava à própria vida por temer a morte.

DLBJ

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Poema Numérico

Matemática

Um homem se matou.
Dois homens faleceram.
Três homens pararam de respirar.
Quatro homens foram assassinados.
Mil homens morreram.
E pararam de sofrer.

Um homem foi trabalhar.
Duas mulheres foram trabalhar.
Três homens foram trabalhar.
Quatro mulheres foram trabalhar.
Cinquenta pessoas foram trabalhar.
E alguém ficou muito rico.

Uma mulher não pensou.
Um homem não pensou.
Uma mulher engravidou.
Uma criança nasceu.
O mínimo de dinheiro faltou.
E uma criança sofreu.

Um político roubou.
Dois políticos roubaram.
Três políticos roubaram.
Dezenas de partidos se aliaram.
Quinhentos políticos corromperam.
E muito dinheiro sumiu.

Um homem mandou matar.
O mesmo homem humilhou.
O mesmo homem explorou.
O mesmo homem estuprou.
O mesmo homem foi prestigiado.
E outro foi preso em seu lugar.

Uma pessoa foi enganada.
Duas pessoas foram iludidas.
Três pessoas foram ludibriadas.
Milhares de pessoas foram trapaceadas.
Milhões de pessoas foram logradas.
E as televisões foram desligadas.

Uma pessoa chegou ao hospital.
Duas pessoas chegaram ao hospital.
Cem pessoas chegaram ao hospital.
Trezentas pessoas chegaram ao hospital.
Dez médicos não chegaram ao hospital.
E vinte pessoas morreram no hospital.

Uma criança entrou na sala de aula.
Duas crianças entraram na sala de aula.
Três crianças entraram na sala de aula.
Quarenta e oito crianças entraram na sala de aula.
Uma professora entrou na sala de aula.
E ninguém aprendeu nada.

Uma merenda não foi servida.
Duas escolas não foram erguidas.
Três postos de saúde não foram construídos.
Quatro estradas não foram concluídas.
Milhões de pessoas não foram atendidas.
E uma quantia incalculável foi depositada em uma conta nas Ilhas Cayman.

Um carro foi montado.
Duas usinas atômicas foram expandidas.
Três fábricas foram inauguradas.
Milhões de pessoas venderam.
Bilhões de pessoas consumiram.
E um planeta foi destruído.


DLBJ

terça-feira, 26 de julho de 2011

Poema de Protesto

O dia de João

João acordou cedo
Às cinco horas da manhã
Comeu pão com margarina
E Bebeu café preto, com açúcar branco
Saiu, tomou chuva na parada de ônibus
Não havia teto nem bancos para sentar
Pegou o ônibus
Uma hora em pé
Desceu, foi para a segunda parada
A chuva parou, veio o sol
Os braços doíam, de carregar suas ferramentas pesadas
Pegou o segundo ônibus
Quase ao descer, sentou-se por cinco minutos
Ah, que alívio
Logo desceu
Caminhou por quinze minutos
Chegou ao trabalho
Virou massa
Ergueu tijolos
Cortou-se com o serrote
Perdeu a lucidez por se expor horas ao sol
Aí parou para comer
Dez minutos, a vianda fria
Voltou para o trabalho
Fez tudo de novo
Já estava escuro
João guardou as ferramentas
O corpo doía
A cabeça doía
As mãos não sentia
Sujo e fedido
Cansado e cortado
Enrudecido e humilhado
Foi-se embora
Tudo de novo, nas paradas de ônibus
Quase em casa, foi parado pela polícia
Deve alguma coisa, vagabundo?
Não senhor, sou trabalhador.
Sei. Estamos de olho.
Chegou em casa
Largou as ferramentas
Tomou café preto com pão com manteiga
Estava prostrado
Sentou-se para assistir TV
Cinco filhos não permitiam seu sossego
A mulher na lida dos afazeres domésticos
Tomou um breve banho
Jantou: arroz, feijão e galinha
Foi para a cama
Onze horas da noite
Os filhos adormeceram
Rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria
Deu uma rapidinha com a mulher
E dormiu, praticamente morreu
No outro dia, tudo se repetiu
E poderia ser pior
João poderia estar desempregado
E aí nem isso teria
Enquanto isso
O padre reza
O empresário enriquece
O político rouba
O estudante estuda
A prostituta trepa
O policial prende
O músico canta
A criança brinca
O bebê chora
Eu escrevo este poema
E você o lê

DLBJ

Crítica

A mídia e a mentira sobre a mulher brasileira

Estava eu, pacato cidadão brasileiro que sou, sentado à mesa almoçando, no intervalo do trabalho, quando me deparei com a seguinte matéria jornalística, veiculada por um popular noticiário televisivo gaúcho, que passa ao meio-dia: “fulana de tal, gaúcha, é a Miss Brasil 2011. É a 11ª conquista dos gaúchos"!
Confesso que essa matéria me tocou profundamente. A mídia dá com uma mão e tira com a outra. É sabido que há décadas, para não dizer há séculos, existe um profundo sentimento de inferioridade arraigado nos corações dos brasileiros. A elite, submissa ao estilo de vida e aos conceitos criados na Europa e nos EUA. O povo, sofrido e perdido (entre as idiossincrasias do passado e a modernidade consumista, na qual não conseguiu se inserir), foi sendo domesticado para aceitar as vicissitudes da vida dura, de um país pobre, em que se deve primeiro esperar o bolo crescer para depois repartir, e foi adquirindo a “consciência” de que, afinal, somos uma nação incivilizada, despreparada, o país das bananas. Resta-nos, ao menos, a histórica cordialidade e o orgulho de ser brasileiro, povo que não desiste nunca.
Não estou pondo em questão aqui aquilo que é óbvio, isto é, o fato de as elites e a grande mídia do Brasil estarem comprometidas, em primeiro lugar, com os interesses externos, econômicos e políticos, o que, aliás, já ocorre há muito tempo por estas terras. O detalhe é que um povo espezinhado se torna uma ameaça, e ridicularizar o Brasil sem cessar é dar margem para que outros resolvam agir. Se isto é uma porcaria, vamos fazer alguma coisa? Este é o espírito da coisa. Aqueles que circulam pelas grandes redes do poder não querem que outros decidam por eles. Assim está bom, não está? Eu vou todos os anos para Miami, para Paris (com sotaque francês), para a Costa do Sauípe. O povo? Quem? Espera aí, que estão me chamando pelo celular (que está no silencioso, sem vibrar). O que quero dizer é que há técnicas até certo ponto sutis de controle do povo. Fazei o povo baixar a cabeça! Fazei o povo aceitar sua condição de inferioridade. Mas dai ao povo alguma alegria, algum orgulho, algo em que se apoiar. É aí que entra o mito da mulher brasileira.
Quem já não ouviu a frase: a mulher mais bonita do mundo é a mulher brasileira? “Agora chegou a vez, vou cantar, mulher brasileira em primeiro lugar”. A beleza da mulata, com seu samba no pé, capaz de enlouquecer os homens e de arruinar casamentos. Aquela mulher gostosa, com pernas roliças, bunda arrebitada e olhar de malícia, herdeira da Capitu, talvez (com olhos de cigana oblíqua e dissimulada). A negra ardente da Bahia. A índia que seduziu portugueses. A mestiça que encantou os viajantes do passado. É, mulher brasileira: ah, quanta beleza! Temos de que nos orgulhar. Há outros “orgulhos” nacionais, é claro, mas me manterei por ora restrito a esta questão: o fascínio que causa a mulher brasileira.
E eis que, todos os anos, realiza-se por estas bandas tupiniquins um concurso de Miss Brasil. Concorrência acirrada, é de se imaginar, uma vez que se trata nada mais, nada menos, das mulheres mais lindas do mundo. Eu quero uma pra mim! Eu não assisti à cerimônia do concurso, mas devo inferir que, lá, estavam presentes as autênticas mulheres brasileiras, não? Acho que não. Todos os anos, praticamente, é a mesma coisa. A vencedora é sempre uma gaúcha da região serrana, de terras de imigrantes alemães ou italianos, uma catarinense de Blumenau ou algo assim, uma paulista de tez branquinha, pouco ensolarada (talvez por viver na terra da garoa). Então, espera aí, estão me enganando? Como assim? Não entendi. A mulata mais gostosa, orgulho nacional, é a mulher mais bonita do mundo. Mas a mais bela do Brasil é uma jovem branca de classe média, de cabelos e olhos claros, que não negam sua origem europeia? Não seria melhor importar uma Miss Brasil diretamente da Alemanha? Convidar uma italiana para passar as férias no Rio de Janeiro e coroá-la Miss Brasil?
A questão é ainda mais complexa. Quem é a mulher brasileira? Imagino que, por vivermos em um país “em desenvolvimento”, em que grande parte da população ainda vive nos limiares da pobreza, a verdadeira mulher brasileira, ou seja, o padrão que melhor a representa, seja o da mulher miscigenada, pobre, trabalhadora, mãe, que não faz escova semanalmente nem consegue caminhar com um livro sobre a cabeça sem deixá-lo cair. Eu teria ficado feliz se a Miss Brasil 2011, título que, por si só, já merece levar o rótulo de ridículo, fosse uma sertaneja, uma nordestina que vive em São Paulo, uma negra, uma favelada, uma dessas mulheres que realmente conhecem o Brasil que existe, o Brasil que não aparece nas telenovelas. O ponto aqui não é beleza. Não quero julgá-las, nem as injustiçadas, nem as que aparecem nas revistas e recebem as faixas de Miss Brasil. Não quero julgá-las individualmente, como pessoa, mas, sim, discorrer sobre uma realidade que é anterior à decisão extremamente subjetiva sobre quem é a mulher mais ou menos bonita. A Miss Brasil 2011 é estudante de jornalismo. Isso é eufemismo para alguma outra coisa? Ora, veja só se a verdadeira “mulher brasileira” (coisa que muitos enchem a boca para falar) pode ser uma estudante universitária. Até ontem, a universidade era privilégio dos homens brancos e ricos. Agora, permanece, embora com significativas mudanças, privilégio de poucos, principalmente de homens e mulheres que, cá para nós, não vivem na miséria. A Miss Brasil 2011 poderia ser lavadeira, diarista, caixa de supermercado, dona-de-casa. Poderia ser até uma dessas mulheres que são vítima de violência doméstica (ganhando o título com um olho roxo, que crueldade, não desejo isso a elas), pois aposto que há muito mais brasileiras que levam uma coça dos maridos em casa que brasileiras estudantes de jornalismo.
Não se trata de uma defesa da maioria. Ah, se a maioria é pobre, a Miss Brasil deve sê-lo também. Se o Brasil é um país miscigenado, nada mais natural que nossa representante seja uma mulata. Não é por aí. Para falar a verdade, nem concordo com a ideia de que exista “a mulher brasileira”, tampouco com a de que devamos rotulá-las e endeusá-las, como se elas fossem troféus. "Ah, ali vai a Miss Brasil, enchendo-se de grana e de glórias, que eu, empresário ou político, pretendo um dia comer". Não. Apenas desejo propor uma reflexão. A imagem da mulher brasileira veiculada pela mídia e pelas velhas canções dos músicos que ganharam muito dinheiro e enriqueceram gravadoras, é uma imagem tipo exportação, como o nosso café. A mulher made in Brazil transformou-se em objeto de consumo, de desejo, chegando à beira da prostituição, que é o que ocorre no submundo da indústria do turismo. Para que serve a mulata? Para casar e ser a mãe dos seus filhos? Podes conversar com ela sobre Dostoievski, sobre a antropofagia de Oswald de Andrade, sobre o governo Collor? Não sei, mas não é o que se pensa quando se olha para a bunda gostosa dela (que é o que a televisão exibe). Será que alguém chegará sem mais nem menos passando a mão na bunda da Miss Brasil 2011, a gloriosa gaúcha estudante de jornalismo? Acho que não. Essa, tirará fotos e será lisonjeada, será muito bem tratada. Aquela, será vista como animal, pronto para o abate (e a mídia ainda insiste em fazê-la comportar-se como tal).
Em um país de submissos (todos, ricos e pobres), que se orgulham daquilo que determinadas forças construíram, historicamente, como motivo de orgulho, ensinando-lhes a orgulhar-se, há vários mitos, e um deles é o de que a mulher brasileira é a melhor de todas, a mais linda. Mentira. Se isso fosse verdade, a mesma seria valorizada e bem tratada. Na hora do sexo, do carnaval, do xaveco, da porrada, de cuidar dos filhos sozinha, sem pai, de trabalhar 12 horas por dia, etc., a brasileira pobre e miscigenada serve. Na hora do encanto, do prestígio, da elegância midiática, do zelo e do carinho, é preferível a branca europeia, de cabelos tão dourados como o trigo e a pele alva, sem as marcas que a vida no Brasil costuma imprimir em sua gente.
Esta crítica não se dirige a tudo e a todos, pois sei que há mulheres felizes e bem tratadas, pobres e amadas por seus maridos e namorados (mas esses são gente comum também, gente brasileira). A mesma é direcionada especialmente à indústria cultural, à mídia, que nos ilude diariamente com discursos furados e com imagens atraentes, e que consegue, a um só tempo, enaltecer vulgarizando, defender vendendo, qualificar desqualificando; e que, de maneira hipócrita e por vezes irrefletida, acaba exibindo como um feito suas próprias contradições, como no caso da Miss Brasil 2011, a mulher mais bonita do país.

DLBJ

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Ensaio II

A coisa

Poucas palavras expressam tão bem o espectro cultural das sociedades modernas ocidentais e ocidentalizadas como a palavra “coisa”. Apesar de provir do Latim causa, que significa “motivo”, “razão de”, e em que pese o fato de apresentar diversos significados, a palavra coisa comumente é associada aos objetos, àquilo que objetivamos, que tornamos palpável, tangível, mensurável. E a mesma não é privilégio das línguas neolatinas, haja vista a palavra inglesa thing, de origem anglo-saxônica, que, guardadas as diferenças entre as línguas, tem sentido relativamente similar ao que verificamos, por exemplo, em português. Não quero propor aqui nenhuma discussão com os linguistas, que me criticarão por ensaiar, talvez irresponsavelmente, acerca de um tema que pouco conheço do ponto de vista científico. Apenas me refiro a um sentido muito peculiar da palavra coisa, que está presente em diversas línguas e que caracteriza, em grande parte, o espírito de nossa sociedade e de nosso tempo. Entenda. Ao interagirmos com o mundo, com a natureza, paulatinamente construímos uma percepção utilitarista da realidade, em que todo o espaço extra-humano é considerado propriedade humana; tudo está a serviço da dominação humana. Os seres micro naturais e as forças macro naturais tornaram-se objetos domináveis, a fim de que se obtenha a supremacia do homo sapiens sobre o planeta. Os próprios homens tornaram-se, em um processo que já vem de longa data, instrumentos de conquista humana, de dominação do todo. Esta visão muito singular no que tange à realidade além-homem, concebe, sem sombra de dúvida, o universo enquanto objeto, enquanto seres adquiríveis, pegáveis, utilizáveis, descartáveis. E isto por quê? Ora, porque o homem ocidental enxerga-se fora da natureza, vê-se como ser supremo. Afinal, ele não é pouca coisa, mas, sim, a criatura feita à imagem e semelhança de Deus pai, criador do céu e da terra. Este homo economicus entende que tudo é seu e produziu uma determinada significação da palavra coisa no intuito de genericamente denominar tudo que lhe pertence. Na falta de melhor termo genérico, atribui-se aos objetos o substantivo coisa, que é vil, prosaico. Nas sociedades do passado, dominadas pela crença na magia e bem menos arrogantes na compreensão de sua posição no mundo, pelo menos no que se refere às suas realizações práticas na interação com o universo natural, havia uma sacralização dos seres (vivos, sobretudo), que não permitia que os mesmos fossem entendidos como meros objetos, como coisas domináveis. O termo coisa veio a vulgarizar a existência extra-humana, no sentido de legitimar o domínio humano do espaço e de seus elementos, agora dessacralizados. O desenvolvimento das ciências é parte indissociável do avanço neste processo de objetificação do cosmos. Ao objetivarmos tudo, repartimos o universo, fragmentamos os seus elementos, tentamos entender suas “partes”, a fim de extrair o máximo proveito das mesmas; afinal, trata-se apenas de objetos, de coisas. As ciências constituem um legado cultural que busca a racionalização das coisas, que pretende analisar, medir, comparar, utilizar, criar, render, fazer, contabilizar, precisar, gerir, dominar, politizar, entre outras “coisas”. Em suma, são o sinal de que avançamos em nosso processo de dominação da natureza, que é motivado por uma compreensão não holística do universo, por uma percepção que vulgariza aquilo que não é humano e que considera que tudo está ao nosso dispor. As origens disso são longínquas e é difícil precisá-las. Mas não é de se admirar que tal processo tenha se dado em uma sociedade que se vê não como a natureza e o mundo, mas como o criador do mundo, isto é, em uma sociedade que se percebe fora da ordem cósmica e de sua miríade de inter-relações entre os mais diversos elementos. A objetificação do mundo, a conversão dos seres em coisas é tamanha, que nas suas interações, os próprios seres humanos transformam-se em objetos, utilizando uns aos outros, coisificando as relações entre pares, produzindo formas sui generis de desumanização do homem. Sim, porque se o ser humano transformou aquilo que não é humano em objeto, para diferenciar-se da natureza, que lhe é inferior, o que ocorre quando o mesmo coisifica (com objetivos utilitaristas) aos próprios companheiros de espécie? Ora, na medida em que um ser humano transforma ao outro em coisa, retira-lhe a condição de humanidade, uma vez que, de acordo com os pressupostos intrínsecos à tradição cultural que herdamos, a não coisificação é condição sine qua non para que sejamos considerados humanos e para que vivamos como tal. Lembre-se: não humano = coisa = objeto = algo de que se pode dispor livremente, para fins diversos, haja vista sua condição de inferioridade e vulgaridade; ser humano = aquele que tem poder sobre o universo das coisas. Logo: se passamos a tratar aos próprios seres humanos como coisas, como seres utilizáveis e descartáveis, estamos coisificando-os, objetificando-os (transformando-os em objetos), isto é, estamos desumanizando-os. Mas a coisificação do próprio homem não é algo que se dê apenas de uma pessoa em relação à outra. Ao submetermos nosso próprio pensamento, nossas ideias, nossos sentimentos, nosso trabalho, em suma, tudo aquilo que fazemos, a um modus vivendi objetificado, estamos desumanizando a nós mesmos. Ao fazermos de nós mesmos (e de nossa existência) objetos, coisas (mensuráveis, quantificáveis, calculáveis, analisáveis, domináveis, subjugáveis, compráveis, trocáveis, etc.), estamos destruindo nossa própria condição de humanidade e estamos acabando com nós mesmos, assim como fizemos com a natureza e com toda a realidade extra-humana. Nós, seres que nos achamos superiores e que deturpamos o mundo em nome disso, demos início a um processo de autodestruição, de transformação do homem em coisa, de tudo em coisa. Tudo é objeto. Tudo pode ser utilizado. Achamos, erroneamente, que a natureza não é mais dona do próprio nariz. Temos a convicção de que uns homens e mulheres são propriedade de outros. Talvez fosse melhor se ainda adorássemos o sol e temêssemos o fogo.

DLBJ

Ensaio

Suspiro, ou o despertar do sono

O que é a mudança, na vida, senão um ato de coragem? A existência é um movimento permanente, movimento do corpo, do espírito, de todas as coisas. Estamos em constante movimento, porque, além de nosso agir, existe todo um movimento cósmico, que conduz a tudo e a todos mesmo que nós, humanos, não consigamos perceber. É o modus operandi do universo. Mas, por outro lado, condenados aos limites de nossa inteligência e percepção, tendemos a enxergar o movimento apenas naquilo que fazemos e que nossos semelhantes fazem, naquilo que observamos, quase “objetivamente”, de ação realizada pela natureza e pelas demais forças móveis do cosmos. Aí surge um impasse. Talvez aqueles grandes eremitas ou monges, que dedicam anos de suas vidas à meditação, consigam perceber, ainda que minimamente, o quanto estamos doutrinados a conceber a vida de uma forma, não diria ilusória, mas única, isto é, de uma certa forma, entre tantas outras formas de percepção que existem no universo, que escapam à nossa limitada conjunção de sentimentalidade e racionalidade (animais que somos). Talvez um índio, conduzido por seus rituais sagrados de entorpecimento, possa ver além, e rir de tudo o mais que observa na existência humana. Mas não nós. Nós, criados em sociedades de Estado, sob a égide do poder, ocidentais, burgueses, domesticados, docilizados, reprimidos, contidos, calculistas, analistas, moralistas, individualistas, consumistas, sádicos e masoquistas. Nós jamais chegaremos à beleza da compreensão do cosmos de um índio fechado em si mesmo, mas aberto para tudo o que existe. Tampouco a nossa ciência, que é filha de todo este conjunto de características limitantes que definem, grosso modo, o nosso jeito moderno de viver, o nosso ethos. Não se trata aqui de uma crítica virulenta à nossa mediocridade, apenas de uma constatação. Que mal há em se dizer a verdade? Que me desculpem os entusiastas da humanidade e de todas as gloriosas conquistas da civilização, mas vocês não são ninguém, não são nada. Aliás, até são, mas não mais que a pedra que dorme no leito de um rio, que o beija-flor que, parado, consegue bater suas asas, que o oxigênio que circula pela atmosfera e que entope os seus brilhantes cérebros. Como disse, nada de crítica ácida. Apenas uma pitada de realidade. Então, a partir deste momento, o que fazer? Se somos tão pouco, se somos mera parte de toda a unidade universal? Para que dominar e destruir? Para que subjugar? Só se for para comprovar, ilusoriamente, nossa superioridade que, insisto, é produto de nossas próprias cabeças doutrinadas que não concebem a verdade, mas uma verdade. Reles seres que somos. O doente do espírito agora diria: que me resta, além de me matar? Pode ser, não nego que seja uma alternativa viável. Mas sugiro que se encare a coisa por outro lado. Admitindo a nossa não superioridade, também não precisamos carregar todo o fardo que a mesma implica, todo o peso de sermos os melhores e os responsáveis por conduzir o futuro do planeta, quiçá do universo. Já é alguma coisa. Além disso, uma vez que Eva e Adão comeram o fruto proibido e que não podemos mais retroceder à inocência pregressa, é necessário buscar um estado de equilíbrio. Sabemos quem somos, mas não conhecemos nossos limites. Devemos exercer nossas potencialidades, mas o fazemos de maneira errada, ou seja, contra tudo e contra nós mesmos. Potência significa capacidade de ação, e a ação deve se dar no sentido de buscar alguma coisa, que, no caso dos seres humanos, talvez seja a felicidade (aquilo que nos deleita). Mexer-se é ter coragem para ir ao encontro da felicidade. Insistimos em existir recorrendo aos polos, ora o apolíneo, ora o dionisíaco. Mas, para quem não percebe a vida de maneira compartimentada, tal diferenciação não faz muito sentido. Tudo é experiência, e experiência é vida, e pode ser felicidade, dependendo de como agimos e daquilo que sentimos. Cabe, aqui, uma ressalva. Que minhas elucubrações não sirvam erroneamente para justificar toda e qualquer atitude. Lembre-se de quem somos. Não os senhores do universo, mas uma pequena parte da eterna movimentação cósmica. Assim, é fundamental que, ao agir, ponderemos os fatos e as instâncias de acontecimento das coisas. Deve-se experimentar as mais diversas possibilidades da existência humana. Porém, ao mesmo tempo, deve-se cuidar para não incorrer em uma postura individualista, pois a mesma contraria toda a lógica aqui proposta da unidade universal. Em suma, não há fórmulas para a vida humana, até porque não somos completamente responsáveis por todos os eventos que se desenvolvem ao longo de nossa existência. As coisas às vezes fogem ao nosso controle. Mas a grande burrice humana está no fato de que, muitas vezes, gastamos nossa potência, fazemo-nos superiores e, com isso, destruímos a nós mesmos (e a todo o universo das coisas não-humanas) e subjugamos nossos próprios desejos e vontades. Envergonho-me disso. Sobretudo porque enxergamos aí a virtude (educados por uma moral repressiva, não era de se esperar outra coisa). O que “diria” disso o leão? O pássaro? A abelha? A água, que insiste em correr? Somos covardes megalomaníacos. Julgamo-nos senhores de tudo e somos escravos de nós mesmos. Nada contra a tradição cultural do mundo moderno, ocidental. Somos filhos de quem somos, e não é uma questão de renegar toda a nossa história. Mas permanecer na mesmice modorrenta me soa tão medíocre, tão infeliz. É possível reconstruir nosso caminho, nem que seja num plano pessoal, subjetivo (quem sabe algo mais, só o tempo é que pode mostrar). A felicidade de cada um, de cada ser humano, tem seu valor. É claro que a mesma não vale mais que a primavera de um urso ou que as carícias da chuva, para uma árvore, mas esta é outra questão. Algumas considerações devem ser sabidas, no entanto: não se está sozinho no universo e, portanto, é preciso zelar por todas as coisas; mas, simultaneamente, é imprescindível o exercício da potência e da virtude, e virtude se exercita com coragem, coragem para não esmagar a outrem e, principalmente, para não provocar, em nome de uma ética hipócrita e traiçoeira, a anulação de si mesmo.

DLBJ

Post-scriptum: Não sou um grande fã de Nenhum de Nós, mas, no momento, esta música me diz algumas coisas...

terça-feira, 19 de julho de 2011

Poema de Resposta

Para bom entendedor...

Às vezes, na vida, é preciso cometer loucuras...
Acabo de fazer as minhas.

Loucuras que me levarão além...
Só me resta ver... e viver.

DLBJ


quinta-feira, 14 de julho de 2011

Poema ao Poeta

Carta ao poeta

Certa feita, um poeta me disse:
Nem sempre se dá o que se quer
A vida é maldita, contida, regrada
Se fosse perfeita, não seria vida
Seria mulher.

O poeta sentia falta
Do que nem mesmo vivera
E pôde expressá-lo com lindas palavras
Artista das letras, poeta que é.

Que posso a ele dizer?
Sinto o mesmo, confesso
E não o falo por dever
Mas porque quero, preciso, peço.

Palavras, fuga da alma
Através delas, o desejo escorre
Enquanto o corpo, adormecido, morre
Por elas, mantém-se a esperança
E voa-se...

Doce crueldade!
Querido poeta: é hora de voltar a sonhar.
Eu já comecei.

DLBJ

sábado, 18 de junho de 2011

Poema da Saudade

Canção da Saudade

Lá vem ela, doce e descompassada, amarga e acorrentada.
Memórias que não se apagam.
Quem sabe, se o tempo parasse
Talvez eu pudesse evitá-la.

A saudade é chama que arde (no lado de dentro).
Nobre sentimento maldito.
Um dia, uma noite, horas intermináveis...
Melancólicos pensamentos perdidos.

Não é humano quem não sentiu saudade
E quem não se queima por sentir.

Esta canção é um chamado
Aflito e desesperado,
Ansioso e inacabado,
De saudade.

Ah, que aperto: nefasta experiência da vida,
Consequência nostálgica do que perdi.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Conto Desumano

O homem que desaprendeu a fazer tudo


         Um belo dia ele acordou e, por alguma razão, não se levantou. Ficou na cama, inerte. Precisava levantar-se para trabalhar. Mas por determinação do instinto, talvez, não se moveu. E assim passou-se parte da manhã. O trabalho? Bem, esse foi o primeiro a ser sacrificado. Ergueu-se. Não sentia vontade de calçar chinelos ou sapatos. Os pés, então, sentiram a textura dura do chão, a superfície fria e úmida.
Já na cozinha, sentiu o estômago roncar e pôs-se a atacar o que havia na geladeira e nos armários. Um estranho sentimento, no entanto, o impediu de utilizar os utensílios típicos da “civilização”, como garfo e faca, xícara ou prato. Sentia-se bem assim. As mãos sujas, o rosto molhado por beber água direto da torneira. Enquanto comia, pegou o jornal, que trazia-lhe as notícias do mundo todas as manhãs. Mas não conseguiu ler sequer uma linha. Aquilo tudo o incomodava demais.
Ligou a mulher. Não conseguiu atender. Pensou: e logo chegarão os filhos! Concentrou o resto de forças de que dispunha e começou a escrever um bilhete, o traçado era trêmulo. Quase fraquejou. Mas foi adiante. Ao final do pequeno texto, lia-se: um beijo e adeus. E foi-se, com a roupa do corpo. Nada em mãos. Da casa e da família, acompanharam-no apenas débeis lembranças.
Saiu caminhando pela rua, arrastando-se pela calçada. As pessoas olhavam-no com espanto, asco, pudor; talvez mesmo com ar de superioridade. Um homem maluco, vagando em trajes de dormir, olhos vazios e sem rumo. Era mesmo de se estranhar. Mas seguiu em frente. Ou melhor, simplesmente seguiu. Para onde? Preferia não pensar. Era tarde e os pés doíam, inchados e ardentes (pouco calejados que eram). Revirou uma lata de lixo e ali encontrou algo para comer. Uma vez saciada a fome, recostou-se contra um muro e, vencido pelo cansaço, resolveu descansar.
Despertou bem, vigiado por cachorros, vira-latas sem dono. Abriu um sorriso e a boca para agradecer, mas preferiu calar-se. Resvalou então a mão sobre a cabeça daqueles animais protetores. Recomeçou sua caminhada indefinida, rumando, sem sabê-lo, para fora da cidade. Já não se distinguia mais dos mendigos que viviam em redor, sujos, maltrapilhos, cheirando à gente de verdade, gente que não toma banho. A barba hirsuta, cabelos rebeldes, desgrenhados. Liberdade enfim.
Abordaram-no. Respondeu com gestos, expressão corporal. Quando falou, foi monossilábico. O que importava era apenas o forte sentimento que o movia, que o levava obstinadamente a desumanizar-se. Deixou a cidade e, na medida em que ia se afastando, começava a ignorar linhas, regras, placas, asfalto, canteiros. E assim o sol se pôs e alvoreceu mais algumas vezes, intercalando sua presença com noites frias e estreladas.
Dormiu com cachorros; comeu com gatos magricelos à noite, quando passou por becos escuros, no submundo das cidades por que passava. Aos humanos, olhava com desconfiança, escondendo-se. Exílio voluntário. Mas ainda lembrava, ainda sabia, ainda conhecia. Cassou aves com raposas, e foi pássaro para pegar o peixe com a boca, na beira das lagoas, e foi também planta, quando soube parar por horas, imóvel, para tomar chuva e sol. Estava aos poucos se desfazendo. Ou começando a viver.
Já não existia mais o tempo. Cada vez com mais intensidade parecia existir só o instante. Tampouco havia o espaço, mas sim o lá e o aqui. Velhos hábitos foram se desvanecendo, como o banco de areia que é levado pelo vento, simplesmente por ser um banco de areia, e não outra coisa. Sentia-se animal. Fazia-se animal. Era um, na verdade, como já o eram todos os outros que, contrariando a natureza, aprenderam a ser gente. E já não temia mais os humanos. Ao menos, não por uma apreciação consciente, por recordações que o faziam manter-se em vigilância. O instinto apenas conservava-o distante de seres que, tão logo se exibiam, aparentavam constituir uma ameaça.
E assim, foram-se de vez a palavra e a voz, os gestos, os trejeitos. Deixava enfim a infeliz carapaça humana, para ingressar naquilo a que algo incontrolável o conduzira. O pensamento não era mais humano, pois não havia mais o pensar. Mente e corpo eram a mesma coisa, como também corpo e além-corpo. Um único estado de transe, sintonia universal entre o ser e o tudo, compreensão definitiva e não consciente de que a consciência é uma ilusão.

DLBJ

domingo, 22 de maio de 2011

Poema da Chegada



Sexta à noite (ou da solidez)



Quando chego, ela está em casa me esperando
Cansada, abatida, resignada
Com um sorriso nos lábios, no entanto
Me acena

Um beijo, o abraço apertado
Amor brando, edificado
Agora não falta mais nada
Me aquece

Uma noite, em sonho e em claro
Tanta coisa a contar, mais ainda a fazer
O sol vem e leva as primeiras horas
Me acorda

Café preto, deitado na cama
Camisa suja, lençol molhado, um desastre
Beijo quente de café
Me repete: eu te avisei

Três dias se passam, tempo implacável
Mala em punho, seres partidos
Olhares que tudo denunciam
Me despeço: fazer o quê?

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Poema da Pele



Tua pele!





A morenice da tua pele...

Ah, quanto amor escondido nestes teus olhos castanhos!

A boca rubra, clara e intensa...

Forma perfeita.

Capricho dos deuses

Ou ventura do acaso?



O vento que bate em tua pele...

Deveria pedir permissão toda vez que fosse tocá-la!

A face morena, altiva e envergonhada...

Paradoxo sem jeito.

Que posso fazer

Diante de tamanho encanto?



O cheiro que exala a tua pele...

Inebria meus sentidos e já me sinto a toa!

Perco a razão, o controle e a monotonia...

Desejo me encontrar

Em teus lábios, doces e aveludados.



Perto da tua pele...

Um frenesi de instinto e afeto me consome!

Morena, arte em forma humana...

Me impressiona.

Deleite minh’alma enquanto amamos.


DLBJ

Poema da Beleza



Da (tua) beleza




Tua beleza vem de dentro

Espelho da alma

Quisera eu alcançá-la

Fugidia, dispersa, efêmera



Ainda assim um clarão

Chama ardente, fulgurosa

Ah, quem me dera...



Tua beleza resplandece

É brilho que me cega

Se eu pudesse tomá-la

Insana, entregue, desejosa



Sentiria o corpo em brasa

A pele úmida, arrepiada

Fusão plena dentro de ti


DLBJ

Poema da Mediocridade





Mediocridade em três versos (ou o ocaso de uma luz)





Se um dia eu acordar, tremendo, entorpecido


É possível que sofra, ainda assim.


Dor não é coisa pouca,

Além da lucidez,

Do ódio, esperança e da nudez.

A morte é o descanso enfim.



Fosse essa a dor de amor, cafona, alucinada

Salvação teria, sempre há.

A vida não é romance porém

E o consolo nem sempre vem

A miséria aqui viverá.



Ouça a voz dos medíocres, covardes, inúteis.

Seu canto é rouco, sufocado

Reprimido e anestesiado.

Potência dispersa no ar.

Mais um medíocre a falar.


DLBJ