quinta-feira, 10 de julho de 2014

Sobre o fim da copa e a derrota do Brasil para a Alemanha:

Tenho tido um pouco de insônia nas últimas noites e, como resultado disso, tenho passado mais tempo lendo postagens no face.

A maravilha de se ter mais acesso à informação e a possibilidade de se estabelecer uma comunicação interativa, na era da internet, traz como ônus o desprazer de lermos algumas bobagens inacreditáveis, fruto da ignorância e, por vezes, de certa dose de má fé de algumas pessoas (eu não acredito que toda mentira propagada seja criada por mera falta de informação).

A Copa do Mundo no Brasil elevou esse fenômeno ao paroxismo. A eliminação do Brasil gerou uma avalanche de inconformidades, de demônios sendo expurgados, que, afora o esbravejamento emocional puro e simples, plenamente aceitável e até esperado, num momento como esse, beirou ao ridículo quando aliada à razão em estratégia de articulação entre futebol e política.

Li frases como: "essa derrota humilhante foi importante para o Brasil tomar vergonha na cara e parar de pensar em futebol, samba e carnaval o ano inteiro e se preocupar com coisas realmente importantes, como trabalhar". Ou: "viu só, gastamos uma fortuna com essa copa para perdê-la; a culpa é da Dilma", etc.

Uma opinião sem fundamentação é só uma opinião. Para quem quer difundir informações/opiniões com condição aceitável de veracidade, sugiro cuidar as associações que se estabelece.

Em primeiro lugar, ninguém faz uma Copa do Mundo para ganhá-la. Ganhar a copa é uma contingência dos acontecimentos da competição, submetidos à lógica interna do futebol, que deve terminar com um único vencedor. Geralmente esse êxito é resultado de uma combinação entre superioridade técnica e trabalho de preparação, de preferência a longo prazo. Outros fatores também interferem, como o famoso "peso da camisa" ou algum ingrediente motivacional a mais, ou ainda o imponderável do futebol, que o torna tão especial (e que dá chances para que os times inferiores tecnicamente, possam, por vezes, vencer). E só. Se não for assim, algo estará errado, pois são as regras do jogo, apenas, que devem regê-lo. 

Ganhar ou não a copa não legitima nem deslegitima os gastos realizados com o evento e a sua realização em si. Não é porque o Brasil não foi campeão que a copa tornou-se um fracasso político imediato. O êxito da copa, em si, deve ser medido no âmbito da organização do evento, da qualidade da logística, dos investimentos feitos, do futebol apresentado pelas seleções, etc. A validação política (ou não) da copa, em um contexto mais amplo, deve ser feita a partir de uma análise que a coloque em relação com outras questões de natureza política, relevantes para o cenário nacional. A realização de uma copa no Brasil, é uma coisa; o título é outra. Da mesma forma, não seria aceitável justificar todos os erros cometidos caso o Brasil tivesse sido campeão.

De acordo com alguns, o êxito da copa estaria garantido pela compra escusa do título. Maldito governo! Copa comprada. Vergonha. Com o passar do tempo, as opiniões foram mudando. A copa não estava comprada. A seleção fracassou, com seu time fraco tecnicamente (como nunca tinha visto igual), pouco preparado e amplamente pressionado (afinal, não era fácil obter a redenção pela copa de 1950 e, de quebra, entrar para o mesmo rol em que se encontram Pelé, Garrincha, Romário e Ronaldo, ainda mais sem o Neymar, que é ótimo jogador, mas não ainda a ponto de ganhar sozinho uma copa). O Brasil foi um fiasco. Perder de forma vexatória em casa. Imagina se a Argentina sair daqui campeã! Maldito governo! Copa vendida. Vergonha.

Os argumentos que relacionam o fracasso dentro das quatro linhas a uma falência da política nacional e do governo atual são de fundo mitológico, no mal sentido do termo. É como se qualquer acontecimento, com apelo popular suficiente para causar uma comoção nacional, pudesse ser convertido magicamente em elemento explicativo da nossa desgraça. É quase como um vício de explicação. Uma retórica sem fundamento, repetida milhares de vezes, por milhares de pessoas, que não parecem estar pensando no que estão dizendo. Vejam bem: a copa foi organizada pelas autoridades brasileiras e pela FIFA. A seleção brasileira é administrada pela CBF (entidade privada). Os clubes de futebol e os empresários, responsáveis pela geração de novos talentos, hoje escassos no país, não são administrados pelo governo federal. Se o governo tivesse metido a colher, comprado a copa, regulado as questões inerentes ao futebol em si, não faltaria quem o a acusasse de autoritário, interventor, corrupto...

Além disso, mais uma vez exala pelos poros o nosso famoso complexo de vira-latas. A derrota humilhante foi comemorada por alguns, que a consideraram um castigo para quem vive de samba, carnaval e futebol. Foi como aquela expressão: bem-feito! E se tivéssemos vencido, será que essas pessoas chorariam a nossa vitória? Será que a Alemanha mereceria uma dura derrota, como castigo por pensar só em cerveja, futebol e disciplina? Nem entrarei no mérito de discutir os estereótipos, porque é claro que sabemos que não é verdade que os brasileiros só pensam em samba, carnaval e futebol. Dormimos em torno de 8 horas por noite. Trabalhamos até 44 horas semanais (mais que nos países da Europa, podem conferir). Temos avançado aceleradamente no que se refere à educação (há problemas, sim, mas não estamos parados). Samba? É ótimo, mas tem gente que não gosta. Carnaval? Em fevereiro até que agita o país. Na Alemanha tem a Oktoberfest, que imitamos no sul do Brasil. Futebol, assistimos duas vezes por semana, no máximo, e se trata de um esporte apreciado no mundo inteiro, especialmente na Europa (não é à toa que tem a repercussão que tem e que movimenta tanta grana).

No fundo dessas percepções reside o mau e velho espírito colonial, com todas as suas interpretações deletérias do mundo "não desenvolvido". Aquelas dicotomias, como moderno x atrasado ou civilizado x não civilizado. Gente, o Brasil não é menos evoluído que a Europa. Não devemos perder no futebol porque temos que nos preocupar com saúde e educação. Sim, temos que nos preocupar com saúde e educação, e isso é prioridade, mas podemos fazer isso ganhando no esporte, aproveitando o carnaval ou apreciando a música que quisermos. Por que o samba ou o pagode são motivos de vergonha? Acaso o rock, com suas letras não raro toscas, é muito melhor? Existem sambas ruins. Mas outros são muito bons, e o mesmo vale para o sertanejo, para o funk, para o forró.

Criticar este ou aquele governo tampouco me parece um bom motivo para torcer contra o país. Gente, o Brasil tem muitos problemas. A organização da copa foi autoritária. A FIFA se beneficiou de um Estado de exceção. Existe corrupção. Sim. Mas a corrupção não foi inventada pelo PT, muito menos o autoritarismo e a repressão à sociedade civil e aos movimentos sociais. O governo atual também não inventou a inflação, a criminalidade e o investimento mal feito. As críticas vêm de ambos os lados, tanto de uma esquerda progressista e militante, ansiosa para dar novos rumos ao país, encorajada pela força demonstrada nas ruas, quanto de uma direita reacionária, enraivecida e desejosa de retomar o poder e suas velhas estruturas conservadoras. Não pretendo votar na Dilma, muito menos em sua oposição à direita. Mas, que fique claro, é inegável que o país tem mudado para melhor. Temos progredido em termos de educação, de erradicação da pobreza, de garantia de direitos às minorias. Por outro lado, ainda precisamos avançar, e muito. É preciso tornar o Brasil um país mais laico, mais independente, mais justo, mais democrático, menos racista, menos desigual, menos machista.

Os desafios estão postos aí, à nossa frente, e agora não adianta mais fazer coro contra a copa. Eu, particularmente, oscilei entre ser a favor e ser contra. Inclinei-me a ser contra nos últimos um ou dois anos. Acho que o movimento contra a copa foi super válido, pelo seu significado político. Mas a copa aconteceu. Do ponto de vista técnico, foi a melhor copa que assisti, desde a copa de 94 (até melhor que a de 94). Quanto à organização, acho que fomos muito bem sucedidos, embora com algumas falhas pontuais. A seleção perdeu? Perdeu. Mas não tinha time para ganhar. Só teria vencido na base do milagre ou se a tal conspiração petista ditatorial comunista realmente existisse. Agora é a hora de encerrarmos a copa com dignidade e de valorizarmos o Brasil como país. O acirramento das questões políticas continua, não era contingência da copa. Estamos passando por um momento singular. Que o debate se aprofunde, com bons argumentos, sem essa retórica pobre e falsa, de aproveitar um grande evento, como a Copa do Mundo e o fracasso da seleção brasileira, para desqualificar irracionalmente o país, sua cultura e o seu governo (que pode e deve ser criticado, mas de forma coerente). Isso se chama oportunismo vira-latista de ocasião. E que venham as mudanças!

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