terça-feira, 24 de maio de 2011

Conto Desumano

O homem que desaprendeu a fazer tudo


         Um belo dia ele acordou e, por alguma razão, não se levantou. Ficou na cama, inerte. Precisava levantar-se para trabalhar. Mas por determinação do instinto, talvez, não se moveu. E assim passou-se parte da manhã. O trabalho? Bem, esse foi o primeiro a ser sacrificado. Ergueu-se. Não sentia vontade de calçar chinelos ou sapatos. Os pés, então, sentiram a textura dura do chão, a superfície fria e úmida.
Já na cozinha, sentiu o estômago roncar e pôs-se a atacar o que havia na geladeira e nos armários. Um estranho sentimento, no entanto, o impediu de utilizar os utensílios típicos da “civilização”, como garfo e faca, xícara ou prato. Sentia-se bem assim. As mãos sujas, o rosto molhado por beber água direto da torneira. Enquanto comia, pegou o jornal, que trazia-lhe as notícias do mundo todas as manhãs. Mas não conseguiu ler sequer uma linha. Aquilo tudo o incomodava demais.
Ligou a mulher. Não conseguiu atender. Pensou: e logo chegarão os filhos! Concentrou o resto de forças de que dispunha e começou a escrever um bilhete, o traçado era trêmulo. Quase fraquejou. Mas foi adiante. Ao final do pequeno texto, lia-se: um beijo e adeus. E foi-se, com a roupa do corpo. Nada em mãos. Da casa e da família, acompanharam-no apenas débeis lembranças.
Saiu caminhando pela rua, arrastando-se pela calçada. As pessoas olhavam-no com espanto, asco, pudor; talvez mesmo com ar de superioridade. Um homem maluco, vagando em trajes de dormir, olhos vazios e sem rumo. Era mesmo de se estranhar. Mas seguiu em frente. Ou melhor, simplesmente seguiu. Para onde? Preferia não pensar. Era tarde e os pés doíam, inchados e ardentes (pouco calejados que eram). Revirou uma lata de lixo e ali encontrou algo para comer. Uma vez saciada a fome, recostou-se contra um muro e, vencido pelo cansaço, resolveu descansar.
Despertou bem, vigiado por cachorros, vira-latas sem dono. Abriu um sorriso e a boca para agradecer, mas preferiu calar-se. Resvalou então a mão sobre a cabeça daqueles animais protetores. Recomeçou sua caminhada indefinida, rumando, sem sabê-lo, para fora da cidade. Já não se distinguia mais dos mendigos que viviam em redor, sujos, maltrapilhos, cheirando à gente de verdade, gente que não toma banho. A barba hirsuta, cabelos rebeldes, desgrenhados. Liberdade enfim.
Abordaram-no. Respondeu com gestos, expressão corporal. Quando falou, foi monossilábico. O que importava era apenas o forte sentimento que o movia, que o levava obstinadamente a desumanizar-se. Deixou a cidade e, na medida em que ia se afastando, começava a ignorar linhas, regras, placas, asfalto, canteiros. E assim o sol se pôs e alvoreceu mais algumas vezes, intercalando sua presença com noites frias e estreladas.
Dormiu com cachorros; comeu com gatos magricelos à noite, quando passou por becos escuros, no submundo das cidades por que passava. Aos humanos, olhava com desconfiança, escondendo-se. Exílio voluntário. Mas ainda lembrava, ainda sabia, ainda conhecia. Cassou aves com raposas, e foi pássaro para pegar o peixe com a boca, na beira das lagoas, e foi também planta, quando soube parar por horas, imóvel, para tomar chuva e sol. Estava aos poucos se desfazendo. Ou começando a viver.
Já não existia mais o tempo. Cada vez com mais intensidade parecia existir só o instante. Tampouco havia o espaço, mas sim o lá e o aqui. Velhos hábitos foram se desvanecendo, como o banco de areia que é levado pelo vento, simplesmente por ser um banco de areia, e não outra coisa. Sentia-se animal. Fazia-se animal. Era um, na verdade, como já o eram todos os outros que, contrariando a natureza, aprenderam a ser gente. E já não temia mais os humanos. Ao menos, não por uma apreciação consciente, por recordações que o faziam manter-se em vigilância. O instinto apenas conservava-o distante de seres que, tão logo se exibiam, aparentavam constituir uma ameaça.
E assim, foram-se de vez a palavra e a voz, os gestos, os trejeitos. Deixava enfim a infeliz carapaça humana, para ingressar naquilo a que algo incontrolável o conduzira. O pensamento não era mais humano, pois não havia mais o pensar. Mente e corpo eram a mesma coisa, como também corpo e além-corpo. Um único estado de transe, sintonia universal entre o ser e o tudo, compreensão definitiva e não consciente de que a consciência é uma ilusão.

DLBJ

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