terça-feira, 26 de julho de 2011

Crítica

A mídia e a mentira sobre a mulher brasileira

Estava eu, pacato cidadão brasileiro que sou, sentado à mesa almoçando, no intervalo do trabalho, quando me deparei com a seguinte matéria jornalística, veiculada por um popular noticiário televisivo gaúcho, que passa ao meio-dia: “fulana de tal, gaúcha, é a Miss Brasil 2011. É a 11ª conquista dos gaúchos"!
Confesso que essa matéria me tocou profundamente. A mídia dá com uma mão e tira com a outra. É sabido que há décadas, para não dizer há séculos, existe um profundo sentimento de inferioridade arraigado nos corações dos brasileiros. A elite, submissa ao estilo de vida e aos conceitos criados na Europa e nos EUA. O povo, sofrido e perdido (entre as idiossincrasias do passado e a modernidade consumista, na qual não conseguiu se inserir), foi sendo domesticado para aceitar as vicissitudes da vida dura, de um país pobre, em que se deve primeiro esperar o bolo crescer para depois repartir, e foi adquirindo a “consciência” de que, afinal, somos uma nação incivilizada, despreparada, o país das bananas. Resta-nos, ao menos, a histórica cordialidade e o orgulho de ser brasileiro, povo que não desiste nunca.
Não estou pondo em questão aqui aquilo que é óbvio, isto é, o fato de as elites e a grande mídia do Brasil estarem comprometidas, em primeiro lugar, com os interesses externos, econômicos e políticos, o que, aliás, já ocorre há muito tempo por estas terras. O detalhe é que um povo espezinhado se torna uma ameaça, e ridicularizar o Brasil sem cessar é dar margem para que outros resolvam agir. Se isto é uma porcaria, vamos fazer alguma coisa? Este é o espírito da coisa. Aqueles que circulam pelas grandes redes do poder não querem que outros decidam por eles. Assim está bom, não está? Eu vou todos os anos para Miami, para Paris (com sotaque francês), para a Costa do Sauípe. O povo? Quem? Espera aí, que estão me chamando pelo celular (que está no silencioso, sem vibrar). O que quero dizer é que há técnicas até certo ponto sutis de controle do povo. Fazei o povo baixar a cabeça! Fazei o povo aceitar sua condição de inferioridade. Mas dai ao povo alguma alegria, algum orgulho, algo em que se apoiar. É aí que entra o mito da mulher brasileira.
Quem já não ouviu a frase: a mulher mais bonita do mundo é a mulher brasileira? “Agora chegou a vez, vou cantar, mulher brasileira em primeiro lugar”. A beleza da mulata, com seu samba no pé, capaz de enlouquecer os homens e de arruinar casamentos. Aquela mulher gostosa, com pernas roliças, bunda arrebitada e olhar de malícia, herdeira da Capitu, talvez (com olhos de cigana oblíqua e dissimulada). A negra ardente da Bahia. A índia que seduziu portugueses. A mestiça que encantou os viajantes do passado. É, mulher brasileira: ah, quanta beleza! Temos de que nos orgulhar. Há outros “orgulhos” nacionais, é claro, mas me manterei por ora restrito a esta questão: o fascínio que causa a mulher brasileira.
E eis que, todos os anos, realiza-se por estas bandas tupiniquins um concurso de Miss Brasil. Concorrência acirrada, é de se imaginar, uma vez que se trata nada mais, nada menos, das mulheres mais lindas do mundo. Eu quero uma pra mim! Eu não assisti à cerimônia do concurso, mas devo inferir que, lá, estavam presentes as autênticas mulheres brasileiras, não? Acho que não. Todos os anos, praticamente, é a mesma coisa. A vencedora é sempre uma gaúcha da região serrana, de terras de imigrantes alemães ou italianos, uma catarinense de Blumenau ou algo assim, uma paulista de tez branquinha, pouco ensolarada (talvez por viver na terra da garoa). Então, espera aí, estão me enganando? Como assim? Não entendi. A mulata mais gostosa, orgulho nacional, é a mulher mais bonita do mundo. Mas a mais bela do Brasil é uma jovem branca de classe média, de cabelos e olhos claros, que não negam sua origem europeia? Não seria melhor importar uma Miss Brasil diretamente da Alemanha? Convidar uma italiana para passar as férias no Rio de Janeiro e coroá-la Miss Brasil?
A questão é ainda mais complexa. Quem é a mulher brasileira? Imagino que, por vivermos em um país “em desenvolvimento”, em que grande parte da população ainda vive nos limiares da pobreza, a verdadeira mulher brasileira, ou seja, o padrão que melhor a representa, seja o da mulher miscigenada, pobre, trabalhadora, mãe, que não faz escova semanalmente nem consegue caminhar com um livro sobre a cabeça sem deixá-lo cair. Eu teria ficado feliz se a Miss Brasil 2011, título que, por si só, já merece levar o rótulo de ridículo, fosse uma sertaneja, uma nordestina que vive em São Paulo, uma negra, uma favelada, uma dessas mulheres que realmente conhecem o Brasil que existe, o Brasil que não aparece nas telenovelas. O ponto aqui não é beleza. Não quero julgá-las, nem as injustiçadas, nem as que aparecem nas revistas e recebem as faixas de Miss Brasil. Não quero julgá-las individualmente, como pessoa, mas, sim, discorrer sobre uma realidade que é anterior à decisão extremamente subjetiva sobre quem é a mulher mais ou menos bonita. A Miss Brasil 2011 é estudante de jornalismo. Isso é eufemismo para alguma outra coisa? Ora, veja só se a verdadeira “mulher brasileira” (coisa que muitos enchem a boca para falar) pode ser uma estudante universitária. Até ontem, a universidade era privilégio dos homens brancos e ricos. Agora, permanece, embora com significativas mudanças, privilégio de poucos, principalmente de homens e mulheres que, cá para nós, não vivem na miséria. A Miss Brasil 2011 poderia ser lavadeira, diarista, caixa de supermercado, dona-de-casa. Poderia ser até uma dessas mulheres que são vítima de violência doméstica (ganhando o título com um olho roxo, que crueldade, não desejo isso a elas), pois aposto que há muito mais brasileiras que levam uma coça dos maridos em casa que brasileiras estudantes de jornalismo.
Não se trata de uma defesa da maioria. Ah, se a maioria é pobre, a Miss Brasil deve sê-lo também. Se o Brasil é um país miscigenado, nada mais natural que nossa representante seja uma mulata. Não é por aí. Para falar a verdade, nem concordo com a ideia de que exista “a mulher brasileira”, tampouco com a de que devamos rotulá-las e endeusá-las, como se elas fossem troféus. "Ah, ali vai a Miss Brasil, enchendo-se de grana e de glórias, que eu, empresário ou político, pretendo um dia comer". Não. Apenas desejo propor uma reflexão. A imagem da mulher brasileira veiculada pela mídia e pelas velhas canções dos músicos que ganharam muito dinheiro e enriqueceram gravadoras, é uma imagem tipo exportação, como o nosso café. A mulher made in Brazil transformou-se em objeto de consumo, de desejo, chegando à beira da prostituição, que é o que ocorre no submundo da indústria do turismo. Para que serve a mulata? Para casar e ser a mãe dos seus filhos? Podes conversar com ela sobre Dostoievski, sobre a antropofagia de Oswald de Andrade, sobre o governo Collor? Não sei, mas não é o que se pensa quando se olha para a bunda gostosa dela (que é o que a televisão exibe). Será que alguém chegará sem mais nem menos passando a mão na bunda da Miss Brasil 2011, a gloriosa gaúcha estudante de jornalismo? Acho que não. Essa, tirará fotos e será lisonjeada, será muito bem tratada. Aquela, será vista como animal, pronto para o abate (e a mídia ainda insiste em fazê-la comportar-se como tal).
Em um país de submissos (todos, ricos e pobres), que se orgulham daquilo que determinadas forças construíram, historicamente, como motivo de orgulho, ensinando-lhes a orgulhar-se, há vários mitos, e um deles é o de que a mulher brasileira é a melhor de todas, a mais linda. Mentira. Se isso fosse verdade, a mesma seria valorizada e bem tratada. Na hora do sexo, do carnaval, do xaveco, da porrada, de cuidar dos filhos sozinha, sem pai, de trabalhar 12 horas por dia, etc., a brasileira pobre e miscigenada serve. Na hora do encanto, do prestígio, da elegância midiática, do zelo e do carinho, é preferível a branca europeia, de cabelos tão dourados como o trigo e a pele alva, sem as marcas que a vida no Brasil costuma imprimir em sua gente.
Esta crítica não se dirige a tudo e a todos, pois sei que há mulheres felizes e bem tratadas, pobres e amadas por seus maridos e namorados (mas esses são gente comum também, gente brasileira). A mesma é direcionada especialmente à indústria cultural, à mídia, que nos ilude diariamente com discursos furados e com imagens atraentes, e que consegue, a um só tempo, enaltecer vulgarizando, defender vendendo, qualificar desqualificando; e que, de maneira hipócrita e por vezes irrefletida, acaba exibindo como um feito suas próprias contradições, como no caso da Miss Brasil 2011, a mulher mais bonita do país.

DLBJ

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